“Poucas pessoas conhecem a história
completa da minha infância. Amigos sabem algumas partes –que fui
adotada, talvez, ou que meu pais já morreram ou que me sinto mal em
mutidões- mas os detalhes são sempre demais para que eu consiga contar
ou alguém consiga ouvir. Estou a contar agora na esperança de ajudar
alguém que precise de ajuda, numa tentativa de encontrar outros
sobreviventes como eu.
Eu sou um produto do incesto. Meu avô
abusou sexualmente a minha mãe –filha dele- por anos, e eventualmente a
engravidou, e eu sou o resultado disso. Ele é meu avô e pai; seus outros
sete filhos são, ao mesmo tempo, meus tios e tias e meu irmãos e irmãs.
Por anos, minha mãe, a mais velha,
suportou o abuso por meio de um triste acordo com ele: ‘Faça o que
quiser comigo, desde que deixe as outras em paz.’ Ela tinha 18 anos e
estava grávida de mim quando descobriu que ele nunca cumpriu a promessa e
foi quando fugiu.
Só então decidiu finalmente denunciar o
abuso. Minha família conseguiu manter a história em segredo vivendo
sempre de mudança e se isolando de qualquer tipo de vizinhança. Eles
viveram em vários hotéis e nunca matriculavam os filhos em escolas. Numa
estranha coincidência, minha mãe foi à polícia ao mesmo tempo que dois
dos irmãos dela haviam sido encontrados após também fugirem de casa. As
histórias eram tão semelhantes que os assistentes sociais ligaram os
pontos.
Levou seis meses até que alguém
perguntasse à minha mãe quem era o meu pai. A família mantinha a versão
de que ela havia sido abusada por algum empregado de um dos hotéis, mas
os assistentes sociais desconfiaram e a pressionaram até que ela
admitisse que eu era filha do meu avô.
Um exame de sangue selou o destino do
meu avô, que foi condenado a 20 anos de prisão por abuso sexual e
incesto (ele foi solto há dois anos, mas continua fichado como
estuprador –eu rastreio os passos dele todos os dias para ter certeza de
que não está vivendo nas proximidades).
Infelizmente, o pesadelo não acabou
depois que ele foi preso. Minha mãe começou a usar drogas e deu
continuidade ao ciclo de abusos. Ela arranjou um novo namorado e me
usava, ainda criança, como parte das fantasias sexuais dos dois. Ela me
filmava e fotografava nessas situações e vendia imagens como pornografia
infantil.
Uma das minhas primeiras lembranças é de
ser colocada de castigo porque resistia ou porque havia me recusado a
fazer sexo oral no namorado da minha mãe. Ela se suicidou, enforcada, no
dia 7 de agosto de 1996, quando eu tinha 5 anos.
Fui mandada para a casa da minha avó,
que havia sido uma testemunha silenciosa dos horrores que o marido
fazia. Ela também não era alguém mentalmente estável e me via como o
fruto da infidelidade do marido –para ela, minha mãe era ‘a outra’. Por
causa disso, me batia e agredia psicologicamente constantemente. Quando
eu fazia algo de que ela não gostava, ela dizia que meu mau
comportamento era porque eu era ‘filha de Satã’.
Na adolescência, minha fúria era enorme e
eu encontrei refúgio em analgésicos e maconha. Fiquei grávida do meu
namorado no segundo grau, quando tinha 16 anos e meu filho finalmente
mudou minha vida.
Parei de beber e fumar assim que soube
da gravidez e toda minha vida passou a ser dar ao bebê uma vida melhor
do que a que tinha tido. Quando dei à luz, os médicos viram aquela
adolescente cheia de hematomas e ligaram para o serviço social. Eu e meu
filho fomos mandados para um abrigo e a assistente social que me
recebeu era a mesma que tinha ajudado minha mãe e seus irmãos anos
antes. Ela decidiu me adotar quando eu tinha 17.
Após isso, tive uma pequena amostra de
uma vida normal. Fui a oradora da minha turma de colégio na formatura,
casei com meu namorado, pai do meu filho. Tivemos outro filho e meu
marido entrou para a Marinha.
Mas durante todos esses anos, tive que
lidar com problemas de ansiedade e o fantasma da depressão. Fui
internada algum tempo após uma tentativa de suicídio. Como terapia,
escrevia todo dia sobre minha vida. Coloquei tudo no papel. Até hoje
leio esses relatos quando tenho dias ruins, para me lembrar o quanto já
superei.
Meu marido e eu acabamos por nos
separar, mas eu e a nova esposa dele viramos amigas. Ela sempre me
visitava no hospital e levava desenhos dos meus filhos. Tenho muitos
amigos que me apoiam. Um deles, com quem divido uma casa hoje, é capaz
de passar 45 minutos me acalmando quando, do nada, tenho crises de
pânico.
Tenho um cachorro que é parte da minha
terapia psiquiátrica. Ele é um São Bernardo fofo que é treinado para
reconhecer quando estou em crise e, literalmente, se colocar na minha
frente e me bloquear até que eu me acalme. Sempre amei animais e sou
voluntária em clínicas veterinárias no meu tempo livre.
HERANÇA GENÉTICA
Você deve estar a se perguntar sobre minha saúde, considerando a minha herança genética complicada. Tenho um risco maior de desenvolver as doenças do lado da família do meu pai, uma vez que tenho mais do DNA dele. Já venci dois cânceres cervicais e, como minhas articulações não se desenvolveram corretamente, tenho artrite. Um médico me disse que sou uma mulher de 23 anos com um corpo de 53.
Você deve estar a se perguntar sobre minha saúde, considerando a minha herança genética complicada. Tenho um risco maior de desenvolver as doenças do lado da família do meu pai, uma vez que tenho mais do DNA dele. Já venci dois cânceres cervicais e, como minhas articulações não se desenvolveram corretamente, tenho artrite. Um médico me disse que sou uma mulher de 23 anos com um corpo de 53.
Namorar alguém é muito difícil, mas eu
tento. A intimidade é a parte mais complicada, emocional e sexualmente,
então eu estabeleço limites, uma série de coisas que posso e não posso
fazer.
Meus filhos são meu maior incentivo.
Eles me ensinam a capacidade de ser feliz. Os dois têm 6 e 4 anos e tudo
que sabem sobre meu passado é que a mãe era uma órfã que foi adotada.
Eles me motivam a sair da cama, ir trabalhar, sorrir. O ciclo de abuso
acabou em mim.
Passei tempo demais da minha vida
sentindo raiva, revoltada com meu passado e ressentida com minha
família. Também fiquei muito pessimista sobre a capacidade humana para o
mal. Me cansei de sentir esse ódio.
Fundei um grupo de apoio
para pessoas como eu, na esperança de formar uma rede de sobreviventes.
Estou bem em relação ao passado, é o presente e o futuro –minha
carreira, meus animais, minha esperança no amor, meus meninos lindos-
que importam para mim de agora em diante.
*Leia o depoimento completo (em inglês)
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