Quem conhece minimamente os meandros do rap nacional sabe que Girinha é um nome que pouco passa despercebido. O pseudónimo é o cartão de visita de Ana Karina da Costa, uma mulher de carapinha dura que soltou as amarras do crespo para se revelar num mundo de negação e de desequilíbrio social. Neste encontro com o Rede Angola, a rapperfalou sobre a forma como vê a Angola de hoje, através de uma introspecção ao meio artístico, político e social.
Além da importante influência dos vizinhos da Maianga (Luanda), Guardilha, B Weiser, Tuly e Obbie, Girinha começou a descobrir o rap quando no início dos anos 2000, tempos áureos dos Army Squad, um dos grupos de maior impacto do movimento hip hop da altura, Dona Kelly começava a apropriar-se de um terreno que até então era de exclusividade masculina.
A adolescente deixou-se contagiar pela determinação e pujança artística de Kelly. “A primeira vez que a vi fiquei assustada. Ela era um furacão em palco, dominava-o.”
Com um empurrão de Kadaff, que a testou com uma música de Lauryn Hill, descobriu que tinha talento e, apesar de só ter ainda lançado um EP, Ressurreição (2005), é até hoje um dos nomes mais conhecidos do rap angolano feito por mulheres. Não gosta que lhe chamemos de rap feminino, porque “rap é rap, não tem de haver uma subcategoria especial para as mulheres”.
É com a firmeza desta frase que delineamos uma artista que faz questão de ter uma palavra a dizer sobre os seus direitos enquanto ser humano, mulher, negra e cidadã angolana.
O processo de “desprogramação” social começa com o cabelo. Enquanto estudava no Brasil, sentiu que era chegada a hora de afirmar a sua negritude, porque “uma negra usar o cabelo liso é uma consequência da colonização. Foi-nos imposto. Foi-nos dito que o que era nosso era feio.” E usar o cabelo liso, desfrisado, não era usar o que era seu. “Eu não sou assim, é uma história que não é minha. Por isso, a aceitação do que realmente és tem de começar por algum lado. Comigo começou pelo meu cabelo. O meu cabelo é um manifesto daquilo que realmente sou.”
“O meu cabelo é um manifesto”
Girinha esteve até há pouco tempo ligada à produtora Galáxia de Dji Tafinha. Apesar da boa relação com o artista e com a empresa, a rapper sentiu a necessidade de se desprender do estatuto de “celebridade” para redescobrir a arte. “Aquela pessoa que estava a cantar não era eu, não era a pessoa que sou. E ainda não sou o que quero ser, mas sentia-me fechada e um pouco alienada por alguns assuntos, mas abri os meus olhos e não tem mais como voltar atrás. A artista em que me estou a tornar hoje trás menos diversão e mais intervenção.”
Quanto aos artistas que deixaram de o ser para se transformarem nas estrelas sem luz de festas, desfiles e passadeiras vermelhas, Girinha diz que acordou antes de cair no mesmo erro. “Eu falo por mim, estava a tornar-me apenas numa celebridade e a meio do caminho parei e lembrei-me que estava a esquecer a minha arte.”
Além de sentir que a sua essência enquanto artista estava a deformar-se, Girinha tinha o seu próprio ritmo. “O Tafinha é a Red Bull em pessoa, está sempre a trabalhar. Ele queria uma artista que se movimentasse mais nesse sentido, que aparecesse mais. Mas eu não queria aparecer tanto e já tenho cabelos brancos, estou a andar mais devagar”, diz sorrindo.
“Fiquei muito tempo na Galáxia, ficámos todos amigos mas [apesar de estar a trabalhar num álbum] escolhi uma carreira independente, porque quando há uma produtora há limites.”
Ao ritmo que vai revelando o que pensa sobre o panorama do meio artístico nacional, Girinha traça o perfil de uma Angola “doente”. “Bonita, de gente muito amigável, mas se eu conhecesse um estrangeiro que não conhecesse Angola, não sei se lhe passaria esse país bonito. Angola é um lugar onde a justiça pode ser cega e que está doente. Eu quero criar a minha família, quero ter um filho e dizer ao meu filho que ele pode pensar e acreditar no que ele quiser. Há muita política e pouco diálogo com o cidadão. Se eu tiver uma opinião apenas como cidadã, sou logo conotada como oposição. Quando não tens liberdade na tua própria casa, pensares num futuro dessa forma é complicado,” diz a rapper.
Numa análise sobre os últimos acontecimentos políticos, que envolvem 15 pessoas detidas sob acusação de planearem um golpe de Estado, “eu não compreendo como é que as pessoas não entendem que esta é uma causa comum. É um bem para todos. A liberdade é nossa, a injustiça é feita contra nós, então é chegado o momento em que temos de ter uma posição. Ou se está a favor, contra ou em cima do muro. Mas as pessoas que estão em cima do muro também não estão seguras. Se o muro cai elas vão se ferir de qualquer jeito.”
Classifica o caso dos 17 activistas em julgamento desde segunda-feira como “muito confuso e injusto”, onde o silêncio é a conivência com o que não está certo. “Estarás a concordar com a pessoa que está a fazer o erro. Eu juntei-me a uma causa de todos nós. Todos nós queremos ter liberdade de expressão, todos nós queremos ter liberdade. As pessoas acham que isto é um país que nos pertence, mas não. Isto é um quintal onde nós não podemos fazer barulho. É injusto.”
Sobre Luaty Beirão, que além de ser Ikonoklasta, o rapperque há muito dá a voz contra as injustiças sociais e um dos rostos mais conhecidos dos “revús” por ter feito uma greve de fome de 36 dias, admira-o bastante. “Até os que não gostam dele acho que o admiram, porque ele tem uma coragem que eu nunca vi ninguém do meu tempo ter. A coragem e o medo andam de mãos dadas, mas muitas vezes o medo é muito mais valente do que a própria coragem. Eles todos têm uma coragem que eu nunca vi. Poucas pessoas estão dispostas a se sacrificarem pelos outros. Se pelos seus já é difícil, imagina por pessoas que nem conheces.” Ainda sobre os limites sociais, Girinha sublinha também o papel da Igreja, que na sua visão “se confunde com a política”. “Vê-se muito em discursos de padres e pastores mencionar-se cargos políticos”, afirma.
Mercado nacional fechado para estrangeiros
Formada em Marketing e Publicidade na Faculdade Metropolitanas Unidas, em São Paulo, a artista diz que gosta da área “mas o mercado aqui ainda é muito aberto para estrangeiros e fechado para nacionais”.
“Não é muito desafiador, enquanto nacional, porque não há concorrência leal. Há um desequilíbrio entre nacionais e estrangeiros. Eles vêm para cargos de chefia porque são estrangeiros. Há pessoas que, pelo convívio e profissionalmente falando, não têm tanto mérito assim. Lá dentro tem muito mais gente capaz. O investimento no estrangeiro podia ser um investimento nos recursos humanos internos, com o salário que dás a um estrangeiro formas um nacional”, sugeriu.
Brevemente quer fazer uma pós-graduação em sociologia, uma das suas paixões. “No meu serviço em Marketing faço muitas propostas voltadas para a sociologia e responsabilidade social então acho que tenho vocação.”
Quanto à música, há TPM (sigla de tensão pré-menstrual) que quer lançar no início de 2016. Está a trabalhar com produtores novos e com Kennedy Ribeiro. Nas participações quer ter Kool Klever e CFK ,os marcos do hip hop nacional, e ainda juntar algumas “meninas” do seu tempo. Sobre o nome, indica que tem a ver com o facto de ser uma pessoa muito emotiva.
“Eu acordo a rir e durmo a chorar, então o que quero passar é que eu tenho sim TPM, das bravas. É aquilo que me acusam de ter quando tento expressar a minha opinião. O meu álbum vai estar cheio de emoções desse género, raiva, amor e tudo o mais.”
No turbilhão de sentimentos que é TPM, raiva é um dos que mais se destaca. “A raiva pode ser um bom combustível para superarmos os obstáculos”, não só os pessoais como os de âmbito social e enquanto a música for o seu megafone, Girinha vai fazer questão de continuar a imprimir essa raiva na sua identidade musical independente e crespa.
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